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Fundamentalismo para quem precisa

Publicado 12 janvier 2015 per Andrea Rego  • 3 112 visualizações

A França viveu ontem um dia histórico. Desde a liberação do país, no final da segunda guerra mundial, não se via uma movimentação igual. Milhões de pessoas foram às ruas em Paris, nas grandes e pequenas cidades, não apenas para se manifestar, mas para mandar uma mensagem ao mundo, que pôde acompanhar, em tempo real, o sentimento que move os franceses neste momento.

Fundamentalismo-para-quem-te-quer
Os atentados da última semana mataram 17 pessoas e feriram outras tantas, mas a França saiu fortalecida e unida. Da violência dos ataques, não se vai fazer a amalgama: a riqueza deste pais é o seu multiculturalismo. E foi o que se viu nas manifestações. Pessoas de todas as idades, de todas as religiões, de todas as nacionalidades, fizeram questão de afirmar que podem viver juntas, apesar das suas diferenças, respeitando umas as outras.
Problemas existem, contradições, incompreensões. Assim tem sido durante séculos e o país tem se apoiado em seus valores republicanos para superá-los. Bom que se diga, a França é um estado laico desde 1905, o que significa uma separação da religião. Elas podem coexistir, jamais uma se impor às outras. A sua convicção religiosa é de domínio privado.
Outro princípio em que se sustenta este país é a liberdade de expressão. E é essa e a questão que se impõe no momento. Se nos estados islâmicos Maomé não pode ser retratado de forma nenhuma, na França, não. Aqui o princípio é que você pode desenhar e falar o que quiser. Quem se sentir ofendido procure os tribunais. Para isso, existem as leis. Leis franceses, pois lembrem-se: nós estamos na França.
A imprensa também esta inserida neste contexto e tem particularidades inerentes aos valores e à cultura deste pais. Não se pode esperar que se comporte igualmente à anglo-saxônica, a do Brasil ou a dos estados islâmicos, por exemplo; isto seria insensato. Por isso, fico triste quando veja algumas manifestações vindas dai, certas delas quase de regozijo pelo que aconteceu ao jornal Charles Hebdo, um fiel representante da imprensa satírica, de tradição irreverente, escrachada e insolente deste país.
Pois saibam que aqui a morte de seus colaboradores, dentro os quais cinco cartunistas reconhecidos entre os melhores do mundo, representou uma perda inestimável. Charlie Hebdo não é só uma jornal querido, ele é uma instituição para os franceses, que se apressam em socorrer e apoiá-lo de todas as formas neste momento. Certo que o jornal não é uma unanimidade, tem muitos que detestam, mas estes não precisam comprar ou lê-lo. Os que apreciam, têm o direito de continuar gostando.
Posso entender, no entanto, que os brasileiros apegados que são à uma moral cristã, se sintam chocados ao se confrontar com as charges de Charlie Hebdo. Mas repito: as coisas devem ser vistas em seu contexto, além do que uma certa abertura de espírito é sempre bem-vinda. Charlie Hedbo não cria fatos, acompanha a atualidade. Se você se ater a isso, vai ver que não se trata de pornografia. O péssimo gosto que muito vezes veem é somente uma forma de chamar atenção, a escolhida por Charlie Hebdo.
Falso dizer ainda que o jornal elegeu os árabes como alvo de uma ação premeditada contra essa população. Quanto a isso me causou espanto as elucubrações de alguns intelectuais brasileiros; verdadeiras teorias conspiratórias. A estes, no entanto, não perdôo e credito mesmo a uma ma-fé, mínimo que se pode dizer diante de pessoas que dispõem de meios para fazer uma análise correta dos fatos.
Mas esse não era o interesse deles. Se o fosse, teriam pelo menos se dado ao trabalho de ver os desenhos de Charlie, porque ele também se “ataca” a outras questões, embora não se tenham noticias de atentados promovidos por conta disso . O que me faz pensar que não é totalmente anodino tal comportamento. Mas, bom, vamos deixar para descobri depois.
Quero ainda dizer que a França está longe de ser o paraíso sobre a terra. Injustiça, racismo, preconceito, pobreza, que convergem sempre para criação de “cidadãos de segunda classe”, infelizmente também existem neste pais. Mas, neste contexto, o lugar dos muçulmanos por aqui não é muito diferente do relegado a outras “minorias” pelo mundo. Talvez seja até melhor do que a realidade desse povo e de outros em outros países. Mas, claro, precisa mudar.
A França tem a maior população de muçulmanos da Europa. E qual seria a razão? Porque, vindos das ex-colonias,viraram párias da sociedade, privados do acesso à saúde e educação pública, dos beneficios sociais, de oportunidades de trabalho, impedidos de professar sua fé? Nao creio.
Para finalizar, quero dizer que, apesar da ameaça que continuar a pairar sobre este país, onde vivo há seis anos, acredito que a França vai superar as suas dificuldades. As manifestações de ontem fortaleceram a minha crença e a dos franceses de todas as origens, que mostraram essa determinação. Os princípios de laicidade e de liberdade de expressão, caros para este pais, vão se sobrepor ao fundamentalismo, este sim, intolerante em todos os seus aspectos.

Também publicado no site cidadeverde.com